quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Contos: Morena

Dudu era um rapaz tranquilo e calado. Não gostava de jogar conversa fora, apenas para preencher o silêncio. Era fã de conversas substanciais. Dizia para si mesmo "seja menos anti social", então, como de praxe, almoçava todas as sextas-feiras, com seus colegas de trabalho. Ele sempre ficava isolado, no canto da mesa, enquanto todos falavam ao mesmo tempo, coisas sobre: futebol, mulheres e política.

Em um desses almoços, Dudu sentara no seu lugar sempre, enquanto o pessoal discutia fervorosamente, sobre campeonato Brasileiro, ele olhou para uma grande janela de vidro do restaurante, que dava diretamente para rua. Foi quando ele a viu. Tudo a sua volta ficou devagar, seu coração acelerou, as vozes se calaram. Com o olhar, ele a acompanhou. Ela era magra, sua pele morena, seus olhos eram grandes e verdes, sua boca carnuda, pintada, com um batom vermelho sangue. Seu cabelo cacheado, preso num coque, no alto de sua cabeça. O vestido longo, preto com grandes flores azul escuros, voava levemente, quando caminhava. Ela o olhou por um instante. Desapareceu. O momento acabou. Tudo voltara ao normal. Dudu ficou imaginando se a veria de novo e se sentia tão perdido quanto Alice. "Quanto tempo dura o eterno? Ás vezes, apenas um segundo."

Na semana seguinte, almoçou todos os dias no mesmo lugar, na esperança de encontrá- la. Pensou que estava enlouquecendo. Talvez estivesse. Então, achou melhor seguir sua vida normalmente.
Na segunda-feira, almoçou e logo depois quis comer algo diferente. Conhecia um lugar perfeito: pequeno, de esquina, com tortas caseiras. A loja parecia ter parado no tempo, se o dono cuidasse, um pouco mais do estabelecimento, seria ainda mais linda. Ao chegar, Dudu travou. Sua Morena estava lá. "Sua Morena", pensou ele, "Ela nem sabe que existo."
Dessa vez, seu cabelo estava preso num trança e usava roupa social, que marcava cada curva de seu corpo. Ela comia lentamente, um pedaço de torta, de morango com chantilly e cada garfada, ficava mais feliz. Ela reparou em Dudu. Limpou a boca com o guardanapo, sorriu e disse: "Dia do lixo". Ele sorriu de volta. Ela o encarou por um tempo, mas como ele ficou em silêncio, foi embora.

Dudu se xingava constantemente: "Seu imbecil. Burro. Idiota. Perdeu a maior oportunidade da sua vida." Agora era tarde para se lamentar. Após semanas, evitando pensar no ocorrido, resolveu ir a uma livraria e, chamou um colega de trabalho. E para sua surpresa, o tal colega entendia muito de tudo e ficou feliz, pela primeira vez, por ter socializado.
Descobriu que perto do trabalho, tem um pub, que as quintas- feiras, tem promoção de happy hour. Chamou os colegas de sempre, porém nenhum deles puderam ir. Foi sozinho.

No caminho, viu uma moça, na frente de um prédio, chorando compulsivamente e sendo consolada pelas amigas, que lhe abraçavam. Quando chegou mais perto, viu que era "sua Morena". Foi até la, entregou um lenço e foi embora. "O que acontecia ali, não era da sua conta", dizia pra si mesmo. Até que sentiu uma mão, puxando levemente seu braço. Era ela. Enxugava o restante das lágrimas, cuidadosamente, para não borrar mais a maquiagem. Disse que ela era o rapaz do restaurante, da loja de tortas e da livraria. Ele ficou surpreso e assentiu. Ela agradeceu o lenço e ele a convidou para o happy hour. Aceitou.

Ele entendia sobre ela lembrar dele, do restaurante e da loja, mas quis saber da livraria, porque tinha plena certeza de que não a viu. Ela disse que o viu, entre as prateleiras, com um amigo, mas não sabia como ou se podia abordá -lo. Então, ficou na dela. Ela quis saber, quem hoje em dia, anda com um lenço de pano, no bolso. Dudu explicou que foi criado com seu avô, que o ensinara a sempre a andar com um lenço, em caso de uma donzela estivesse em apuros. Nos tempos atuais, ele sabia que, as mulheres não precisam ser salvas. São fortes, independentes e podem lidar, sozinhas, com seus problemas, mas que uma ajuda é sempre bem vinda, mesmo que seja só um lenço, pra enxugar as lágrimas. Ela sorriu. Conversaram sobre tudo: cinema, séries, livros, faculdade, trabalho, família, amores e desamores. Ela explicou o porquê de estar chorando, mesmo Dudu não tendo perguntado, mas ele ouviu atentamente. No fundo, estava curioso.
Há um ano, ela namorava esse rapaz, que conheceu através de um amigo. Eles tinham um relacionamento saudável, com brigas esporádicas, normal em qualquer relacionamento. Uma vez, ele fez uma viagem a trabalho e um dia antes de voltar, disse que ficaria mais dois dias, pra conhecer a cidade. Mesmo não tendo sido convidada pelo namorado, afim de lhe fazer uma surpresa, foi até ele. Chegando lá o viu com outra. Como se não bastasse, a outra era sua melhor amiga. "Melhor amiga", ela enfatizou essa última parte, fazendo as aspas com os dedos. Há seis meses, ela vinha pedindo pro ex, buscar o restante das coisas dele, entretanto, sempre arrumava uma desculpa. Querendo se livrar de vez daquilo tudo, mandou uma mensagem, dizendo que se ele não viesse buscar suas coisas, no trabalho dela, no final do expediente, jogaria tudo no lixo. Ele foi, pegou a caixa e falou, aos berros, que a culpa dele ter a traído, era dela. Por ser uma mulher chata, frígida, sem graça, melosa e grudenta. Que ele fez um favor, ficando com ela, por todo esse tempo, que ninguém mais ia querê-la, pelos motivos citados anteriormente. Ela deu um sorriso, sem graça. Dudu apenas disse: "Seu ex é um idiota. Não deve ouvir pessoas idiotas." Ela caiu na gargalhada.
Na hora de ir embora, trocaram telefones. Raquel. "Sua Morena", se chamava Raquel.

Na manhã seguinte, ele a convidou para almoçar. E os dias seguiam assim: eles almoçavam juntos, iam embora juntos e o happy hour era de lei. Tantas coisas em comum. Conversas infinitas. Risadas constantes. Troca de olhares.

Uma noite, enquanto esperavam a chuva forte passar, Dudu perguntou: "Posso te beijar?" Ela o olhou, depois de alguns segundos, respondeu: "Não sei porque ainda não beijou."
Ele a puxou pra si e a beijou apaixonadamente. Mais uma vez, o tempo parou.



































domingo, 3 de setembro de 2017

Por que os mortos?

Nove meses atrás, me inscrevi num curso de Técnicas de Necropsia*e, cursei ele por seis meses. Em maio desse ano, me inscrevi em outro curso, de Tanatopraxia**. Sempre que falo o que estudo e com o que trabalho (com os mortos), ouço: "Você é maluca", "Você sente fome?", Você come dentro do laboratório?", "Sonha com isso não?", "Não tem medo?", etc.  Uma única vez, me perguntaram: "Mas por que os mortos?" e só soube responder: "Porque os vivos me perturba muito." Mas na verdade, não sabia exatamente a resposta para aquela pergunta. Nunca mais me perguntaram isso, porém hoje sei a resposta.

Quando morremos, a única certeza é que somos todos iguais.
A maioria das pessoas, em vida, tentam ser melhores do que as outras. O branco tenta ser melhor que o negro. E vice versa. Moradores se achando melhor que o porteiro, a patroa achando um absurdo a filha da empregada ganhe mais que a filha dela, sendo que ambas tem faculdade, porém a filha da empregada trabalha em três empregos. A pessoa que tem mais formação acadêmica que a outra ou uma posição social melhor. Hétero vs homossexual. Um querendo ser superior ao outro, mas quando morremos, vamos todos para o mesmo lugar.

Na minha mesa, onde deitou a rica, deitou o pobre, o negro, o branco, o homossexual, o hétero, o porteiro, a empregada, a filha a empregada e da patroa, o formado, o analfabeto... Todos tratados da mesma maneira. Todos tratados com os mesmos instrumentos. Sem tratamento especial, porque ali, ninguém é melhor do que ninguém.

Quando se trabalha com a morte ou próximo dela, percebe - se que perdemos muito tempo com coisas pequenas e nos lamentamos demais, quando apenas precisamos agradecer pelo o que temos. Tudo acontece por um motivo: desde a pessoa que entra na nossa vida, as que sai e as que mantemos por perto. A vida é curta demais pra guardar rancor com pessoas desnecessárias. Aproveite cada momento, cada instante, cada pessoa. Não julgue o próximo, você não sabe o que ele (a) passa, nem como vive, não conhece sua história de vida. Somos todos iguais, mas passamos a vida inteira tentando aprender isso, mas não conseguimos ou simplesmente não queremos. E quando nos damos conta, já estamos mortos. Tarde demais pra aprendermos qualquer coisa.

Por que os mortos? 
Porque é onde todas as pessoas são iguais e livre de julgamentos.



*Técnicas de Necropsia: Identificação de corpos, abertura, evisceração e fechamento de corpos, identificação de órgãos, projeteis e traumas, fixação de peças atômicas para exames posteriores, guarda e arquivamento temporário do material, armação e limpeza da mesa de necropsia e instrumental

** Tanatopraxia: são cuidados e tratamentos dispensáveis ao corpo após a morte. Ou seja, procedimento de preparação do cadáver para o velório ou funeral, assim o corpo não sofrerá pelo tempo solicitado pelos familiares e as decomposições naturais.